sexta-feira, 26 de março de 2010

Para gostar de ler

Lembro-me que, na minha distante juventude, havia uma série de livros usados para o ensino de literatura nas escolas chamada Para Gostar de Ler. Eram pequenas antologias de textos literários de autores consagrados, clássicos e contemporâneos, que serviam de material de apoio para as aulas de Comunicação e Expressão. Costumava ler esses livros inteiros naqueles dias que precediam o início das aulas, quando meus pais já haviam se antecipado e comprado o material escolar para todo o ano. Na primeira aula daquela disciplina, já tinha os textos quase decorados. E assim também acontecia com outros colegas de turma - tínhamos o hábito - e a avidez - de ler boas histórias e poesia.

Semana passada, discutíamos na editora a nossa linha de livros infantis. Fui cobrado por não ter descoberto para a editora o próximo Harry Potter. A solicitação fez-me lembrar da pilha de originais na minha mesa e de todas as histórias infantis mal-escritas que recebemos todos os anos. Tentei argumentar, mas é difícil chegar a um consenso com alguém que leu na infância A Riqueza das nações ao invés dos livrinhos da simpática coleção Para Gostar de Ler.


Fala-se muito nos baixos índices de leitura dos brasileiros, e do quanto os pais devem investir para que seus filhos se tornem futuros leitores. Mas não há fórmula secreta para que isso aconteça: pais leitores criam filhos leitores, leitura é hábito que se aprende em casa e não adianta muito ter prateleiras abarrotadas de livros infantis no quarto do filho se ele nunca vê seu pai ou sua mãe com um livro na mão, optando pela literatura ao invés do hipnotismo televisivo. Mas há um problema ainda mais basilar: a leitura não é valorizada no Brasil. Não se comentam os livros, não se vê, por exemplo, um bom programa televisivo que discuta literatura, livros, entreviste autores, cubra grandes eventos em torno da leitura. Não há exageros em minhas palavras: basta computarem o tempo gasto por dia pelas emissoras de televisão na cobertura dos campeonatos de futebol e teremos, sem grande margem de erro, o tempo total do que se falará sobre livros em todo um trimestre na televisão. E desse tempo, ainda se pode ser purista e descontar o tempo gasto falando-se de livros escritos pelos amigos do apresentador de TV, ou em torno dos quais há uma máquina de marketing das grandes editoras literalmente comprando o tempo televisivo para merchandising de seus livros.

Se os ídolos de hoje não leem, não são vistos com livros, não recomendam livros, não comentam livros - porque uma criança ou adolescente se interessaria por livros? Livros, aos olhos dos jovens de hoje, não servem para muita coisa além de gerar algumas perguntas sem sentido nas provas de vestibular.

Houve um tempo no qual ser erudito, construir-se como intelectual, ler livros, era algo almejado e invejado. Hoje, é bem provável que a grande massa veja os leitores como seres estranhos, bizarros até, ou simplesmente como gente que perde tempo e dinheiro lendo livros. O livro está em baixa, ainda que o mercado editorial comemore um aumento nas vendas e produção de títulos. Mas a luz vermelha já acendeu: estamos ficando escassos de leitores - leitores, de fato, capazes de compreender o papel sublime da literatura de fazer-nos viver experiências de vida sem ter que sofrê-las na carne, de fazer-nos mais humanos por compartilhar essa experiência universal de viver neste tempo, fruto de tempos passados, caminho para tempos futuros. A massa prefere aguardar passivamente que a tela - da televisão, do cinema, do celular - lhes conte uma história qualquer para passar o tempo.

Mas meu editor-chefe quer um novo Harry Potter. Não me espantaria se ele completasse o raciocínio e dissesse logo que está de olho mesmo é nos direitos futuros a serem vendidos para o cinema. Quem se importa com o livro? Para gostar de ler, é preciso querer tomar as rédeas da própria vida - e isso vai muito além da falsa independência que nos dá o controle remoto da televisão.